sábado, 4 de junho de 2016

Coração do Homem - Coração de Deus



À guisa de Introdução ao nosso estudo, vamos tomar emprestado as primeiras páginas do saboroso livro Sagrado Coração do Homem, do Padre Paschoal Rangel, já citado em nosso outro estudo que versa sobre a Ladainha de Nossa Senhora (Ladainha Lauretana), no artigo intitulado "Pra Começo de Conversa".
Espero que seja do agrado deste maravilhoso Sacerdote e Teólogo, dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora (SDN), ao qual pedimos licença. As páginas são belíssimas, ricas, esclarecedoras e  acessíveis - mas com esmero teológico, como sempre foi do seu estilo. Contudo, numa linguagem simples e poética.
Os que desejarem poderão, também, ler o nosso estudo sobre O Coração nas Sagradas Escrituras, que empreendemos na nossa biografia sobre Santa Rosa de Viterbo.



Escreve, então, Pe. Paschoal nos preâmbulos do livro, que pode ser adquirido - eu indico, e é baratinho -, no site da Editora O Lutador: Sagrado Coração do Homem - Padre Paschoal Rangel:

As ladainhas,ou litanias, são preces dialogadas, em que um dirigente (ou, como diz o povo, "tirador" ou "puxador") enuncia uma invocação ou um "título" e outra ou outras pessoas repetem longamente a mesma súplica. O "título" é um motivo, uma razão que justifica o pedido. 
Quando as ladainhas se referem a Nossa Senhora ou aos santos, a súplica-refrão é "rogai por nós". Quando se refere a Deus, a Jesus Cristo, o estribilho é "tende piedade de nós". É o que acontece na Ladainha do Sagrado Coração. Nossos pedidos se fazem sempre a Deus, portanto. Ou diretamente - e aí imploramos sua misericórdia -; ou indiretamente - e então usamos a intercessão dos santos ou da Virgem Maria, que rogam a Deus por nós. 
Ainda em vida de Santa Margarida Maria, várias ladainhas se compuseram, em louvor ao Sagrado Coração de Jesus, com grande alegria para ela. Assim, a de Sóror Joly, religiosa da Visitação de Dijon; a da Madre de Soudeilles, da Visitação de Moulins; a do Padre Croiset, talvez a mais completa de todas essas. Pouco tempo após a morte de Santa Margarida Maria, ocorrida a 17/10/1790, Sóror Anne-Madeleine de Rémusat, também visitandina, agora de Marselho, recolheu a maior parte das invocações já em uso, em uma só Ladainha, que começou a ser conhecida como Ladainha Marselhesa, porque aprovada e transformada em devoção popular pelo bispo diocesano de então, que atribuía ao Sagrado Coração de Jesus ter-se o povo livrado de peste que assolava a região. É essa Ladainha, quase toda aproveitada do Padre Croiset, que o Papa Leão XIII afinal aprovou para a Igreja universal, a 02/04/1899, acrescentando-lhe seis invocações, perfazendo com isso o número de trinta e três (33). 
Trata-se de uma ladainha cheia de doutrina, marcada por uma teologia que une a devoção ao Coração de Jesus, de um lado, à Paixão redentora, e, de outro, à Eucaristia; ambas ( Paixão e Eucaristia) ligadas à ideia de reparação pelo pecado e de reconciliação dos homens com Deus. É possível aprofundar muito a teologia dessas invocações e extrair delas uma robusta espiritualidade cristã e atualíssima. Está aí uma visão teológica de impressionante poder eurístico, inspirador, estimulante, capaz de criar em nós compromissos profundos. 
[As trinta e três invocações (33), não é casual], A intensão é prestar uma homenagem aos trinta e três anos da vida de Jesus. Quer dizer, o Coração de Jesus, símbolo do amor de Cristo que nos reconcilia e liberta, engloba a vida inteira de Jesus, de sua concepção (momento em que, segundo Paulo, ele se entregou ao Pai de uma vez por todas (Hb 10, 5-10), até sua morte e ressurreição. Tudo era amor e dom de si. Tudo era reparação, reconciliação, libertação. E é tudo isto que a Ladainha celebra (1).

Continuemos, ainda, lendo um pouco mais das deliciosas páginas do Padre Paschoal falando sobre o Coração de Jesus:

Em 1965, o Papa Paulo VI escreveu uma Carta Apostólica, endereçada aos bispos e fiéis de modo geral, em que lamentava o esfriamento do culto ao Sagrado Coração de Jesus: "O culto do Sagrado Coração que - dizemo-lo penalizados - se tem enfraquecido em alguns, refloreça sempre mais a cada dia e seja considerado por todos como uma forma nobilíssima e digna daquela verdadeira piedade que, em nosso tempo, especialmente por obra do Concílio Vaticano II, vem sendo insistentemente reclamada, para com Cristo Jesus, Rei e centro de todos os corações." (1.a) 
O Papa se queixava de um esfriamento no culto ao Sagrado Coração. Por outro lado enfatizava sua atualidade, sua capacidade de responder aos apelos inovadores do Vaticano II, de levar a uma vivência cristã inserida em nosso tempo, numa Igreja que busca dar respostas às exigências de uma piedade sóbria, baseada numa teologia sensível à "virada antropológica", isto é, capaz de perceber o homem de hoje e sua problemática, sua linguagem, suas referências, capaz de motivar o homem deste fim de século. 
No entanto, já em 1952, tentando uma renovação do entusiasmo co Culto do Sagrado Coração de Jesus, a revista francesa, "Vie Spirituelle", chamava a atenção para um problema: "Por seu vocabulário e seu estilo, pelo tipo de suas manifestações habituais, pela psicologia mesma de seus fiéis, a devoção ao Sagrado Coração não pode deixar de criar um certo mal-estar naqueles de nossos contemporâneos - e eles são cada vez mais numerosos - que desejam uma vida de oração bíblica e litúrgica, viril e sóbria." (2) 
Nós somos desastradamente comodistas. E, presenciando à deterioração de um culto tão profundamente bíblico e rico de verdade cristã, preferimos passar adiante, buscar alguma novidade por vezes bem menos sólida, a trabalhar no resgate da beleza fundamental que se foi perdendo pelo envelhecimento das fórmulas ou das formas, simples acúmulo da poeira do tempo, que ninguém limpou. 
Mas não deixa de ser significativo que grandes autores atuais, entre eles, de modo eminente, Karl Rahner, mas também teólogos como Louis Bouyer, Yves Congar; liturgistas como J. A. Jungmann, o Cardel Schuster; mestres espirituais como Dom Comumba Marmion (Cristo em seus Mistérios) etc. tenham dedicado páginas e páginas ao Coração de Jesus. Isto, para não falar da insistência dos Papas, desde Leão XIII e Bento XV, até os grandes textos de Pio XI (Misesentissimus Redemptor, de 8/5/1928) e Pio XII (Haurietis Aquas, de 15/5/1956), da qual escreveu Karl Rahner: "Os teólogos que queiram falar do Sagrado Coração de Jesus, podem fazê-lo facilmente, bastando para isso citar a grande encíclica 'Haurietis Aquas'". 
O que nós gostaríamos de fazer aqui é reaviventar as verdades e belezas fundamentais desse culto, e mostrar quanto ele é forte, teologicamente sólido, suculentamente bíblico, e quanto pode, por isso mesmo, responder às exigências do cristão de hoje.


Estão gostando, não é? Continuemos a leitura, então, pois tem muitas surpresas agradáveis ao nosso coração, ainda por vir, nestas páginas do Pe. Paschoal, e nisto que chamei de "preâmbulo", as transcreverei por inteiro - com alguma vergonha, por ser apenas um copista, mas vencendo-a. Por que mudar uma vírgula, ou um ponto, se o que já foi escrito me parece perfeito e claro? Seria um desfavor aos "meus" leitores. E estamos falando aqui, não de um coração qualquer, mortal, mas do Coração de Deus! Far-me-ei, assim, de um mero mensageiro. Segue ele:



Um Coração - A palavra "coração" corre o risco de se desgastar num sentimentalismo desagradável, desprezível. No entanto, é uma palavra fundamental, insubstituível, em qualquer língua. É indispensável. Talvez o comentário mais profundo sobre isso se encontre em Karl Rahner (um dos teólogos mais sérios e menos melosos de nosso tempo), numa meditação que ele intitulou: "Eis aquele coração!" (3).
 
"Coração" é uma palavra originária, primigênia, fundante. Todos parecem entendê-la. No entanto, ela ameaça escapar-nos, a todo instante, indefinível, cambiante, caleidoscópica. Um mínimo de movimento, de inflexão na voz; a mínima nuança da frase; uma inversãozinha qualquer - e ei-la, de repente, outra, tão antiga e tão nova, sempre surpreendente comouma recém-nascida. Pascal, que soube valorizar, como poucos escritores, os termos comuns da língua popular, tinha um enorme carinho com a palavra "coração". Como a várias outras da fala do povo, parecia achá-la primordial, inenquadrável conceptualmente, maravilhosamente isenta de equivocidade. Tal como acontece com os termos e figuras elementares da geometria, a natureza teria suprido, no caso de palavras básicas como "coração", à incapacidade da razão lógica para defini-las, suscitando em todos, ao ouvi-las, uma ideia semelhante, capaz de preservar-nos da confusão, da incomunicação(4). 
O equívoco ou a não-compreensão, porém, se infiltra, por causa de nossa superficialidade; daquilo que um famoso filósofo contemporâneo chamou "banalidade", que leva à loquacidade, à tagarelice, que faz as palavras perder seu "pode-ser", sua capacidade de evocação. As palavras, como os homens, se banalizam. E aí as coisas fortes e bonitas que elas contém, começam a parecer desengraçadas, insípidas. E foi isso que aconteceu com a palavra "coração", especialmente quando ela se ligou à expressão "Coração de Jesus". 
O que precisamos de começar a fazer, com o maior interesse, é recuperar a palavra, a expressão. Não podemos perdê-la, porque, como dizia Rahner, essa palavra é insubstituível. Se ela diz coisas básicas, indispensáveis ao cristianismo, então, será indispensável restituir-lhe a força fundadora. 
E isto se faz pela "meditação", por um esforço de repensamento, pela aproximação de ideias-forças, que se fecundem mutuamente, que comuniquem uma à outra seu lastro afetivo, emocional, suas virtualidades religioso-espirituais para a ação pastoral, para a existência cristã. 
Ora, se procuramos na Bíblia um sentido forte para "coração" (em hebraico: leb), vamos descobrir que ele é a sede da vida moral, dos sentimentos, da vontade, e mais: é o princípio das operações de conhecimento, da memória, da sabedoria (5). Nesse sentido, São Paulo falava dos "olhos do coração" (Ef 1,18). Até os intelectualizadíssimos gregos atribuíam ao coração um certo poder cognoscitivo. E os latinos chamavam "cordatus" ao homem "sensato", prudente; ao homem de bom senso. 
"Coração" é, sim, um músculo, um órgão de carne, sem o qual a vida não circula, o homem morre. (Pode até ser um órgão artificial. Isto é menos importante. O coração, seja do que for, é essencial). E é por causa dessa função fundamental que ele é símbolo das coisas fundamentais. É porque ele dispara quando estamos amando, ou se comprime quando temos medo ou ficamos tristes; é porque ele dá a impressão de abrir-se em esperança e espocar de alegria quando prevemos o melhor - que dizemos que o coração é o centro e o símbolo do amos, das intuições mais lindas, das impulsões mais irreprimíveis. 
Mais que isso, a Escritura nos revela sentidos amplos e fortes para a palavra "coração" (leb), desde o desse órgão material que bombeia vida para o organismo todo, sem parar, 60, 70, 80, 90 anos, até o de "memória" (Dt 4,9) - uma memória, é verdade, banhada de afetividade; o de atenção (Ecl 8, 9) e o de sede da sabedoria (Ecl 8,5); a Escritura fala do coração sábio e do insensato (Eclo 21,29; Sb 15,10), de "grandeza e pequenez do coração" para significar a fraqueza ou a fortaleza da inteligência (1Rs 4,29; Eclo 16,23). Para o homem bíblico, o coração está presente em toda a vida humana, ele é o "centro" da vida humana ( o termo "leb" possui também esse sentido de "centro", daquilo que está no meio de nós, no mais dentro da gente). Talvez por isso, o vocábulo volta 598 vezes no Antigo Testamento. E se se acrescentarem as vezes que reaparece seu derivado "lebad" (com significado sinônimo), teremos mais 252 vezes (6). 
São João Eudes descobre na Bíblia pelos menos oito sentido diferentes, cada qual mais profundo, para "coração": ele é a raiz do bem e do mal no homem; é aquela "fina ponta do espírito", de que falavam os teólogos, para exprimir a parte superior da alma que leva à contemplação mística; é o íntimo mais íntimo de nós;  chega a significar o próprio Espírito Santo, "coração do Pai e do Filho", que o Pai e o Filho nos querem doar, no seu infinito amor e "condescendência", para ser nosso espírito e nosso coração: "Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo..." (Ez 36,26). É com esse coração que conhecemos e amamos a Deus (7). 
Neste sentido, tinha razão Pascal, quando atribuía tanto valor ao coração: "É o coração que sente Deus, não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão" (Pensées, n. 278, Paris, Garnier Frères). Pascal não "sente" as coisas. Por isso, chama em socorro o coração, esse "dentro de nós", esse "centro do homem". 
Pois bem, quando falamos do Coração de Jesus, será necessário não "amolecermos" a palavra com sentimentalismos, mas tomarmos o termo em toda a sua riqueza e robustez. 
A Bíblia está cheia de revelações fortes e delicadas da bondade, da misericórdia e das atenções de Deus para conosco. A cada página, o coração de Deus. Um coração que ama, perdoa, sai atrás de gante, chora, chama, ameaça, castiga, "desesperadamente" amoroso na história da salvação, abertamente, sem pundonores nem méis, que nós queremos e precisamos descobrir e amar, no culto ao Coração de Jesus. Belamente. Sem beatices. 
A Sagrada Escritura usa a palavra "coração" nos mais variados sentidos, como vimos atrás e já o notara São João Eudes, estudando o Coração Admirável de Maria. Recordando: poderia significar até mesmo aquilo que certos teólogos chamaram "a fina ponta do espírito", quer dizer, aquela potência suprema da alma humana, quase escapando já aos nossos "poderes" simplesmente naturais, de receber a luz mística da contemplação sobrenatural, ali onde Deus se comunica com o homem, através de um simplicíssimo olhar, uma visão única, sem discurso, sem raciocínio nem multiplicidade de pensamentos. Tudo o mais estaria em repouso no homem, só seu coração vigiaria... "Ego dormio et cor meum vigilat" (Eu durmo, mas meu coração vigia) (Ct 5,2). O coração seria o nosso íntimo mais íntimo a nós do que nós mesmos, de que falava Agostinho, os Padres antigos, São Bernardino de Sena, etc. Mas o "coração", na Escritura, é também muitas vezes o "homem interior", tudo o que temos em nós, nossa personalidade profunda (8). 
Discípulo de Bérulle, São João Eudes preferia frisar o coração como "símbolo da Pessoa" de Cristo que se entregou ao Pai por nós. Já a Escola de espiritualidade "salesiana" (derivada de São Francisco de Sales), mais ligada ao que se chamou de "humanismo devoto", mais popular, mais próxima dos sentimentos simples, era naturalmente levada a pensar no Coração de Jesus como "símbolo do amor". Gostava de repetir Santa Margarida Maria que Jesus lhe teria dito: "Eis aqui o Coração que tanto amor os homens e, por recompensa, recebe da maior parte deles apenas ingratidão". Era sempre o amor que se tinha em vista. Porém, segundo a forma mais sentimental que se arraigou (ainda que sem sentimentalismo). E foi essa forma que se arraigou no coração do povo. Esse era um amor sensível, que brotava de um coração de carne, ferido pela ingratidão. 
A maneira "bérulliana" (que São João Eudes parecia preferir) era mais intelectualizada, ou mais mística, se quiserem, fazendo menos concessões aos sentimentos. Já a Escola de Paray-le-Monial (representada por Santa Margarida Maria), mais antropocêntrica, mais próxima da maneira de sentir do povo, fazia questão do "elemento sensível", "o coração corpóreo de Jesus, seu "coração de carne". O Padre Bainvel, teólogo jesuíta, muito ligado ao grupo de Paray-le-Monial, mas suficientemente bem formado e crítico para não querer radicalizar, achava, entretanto, que "não há devoção ao Sagrado Coração, propriamente falando, onde o coração de carne não tenha nada a ver" (9) (BAINVEL. La dévotion au Sacré-Coeur, Paris, 1917, 0. 149, cit. em BREMOND, o.c. p. 313). 
Quer dizer ( e S. João Eudes e o próprio Cardeal De Bérulle concordavam com isso, moderadamente) que o "coração", no culto ao Sagrado Coração de Jesus, não era um mero símbolo abstrato; que seu coração de carne tinha muito a ver com a obra da salvação de Cristo, pois era a presença de sua humanidade, do realismo de sua Encarnação, que não se podia simplesmente volatizar. Era preciso, apenas, descobrir o valor teológico da "carne" de Cristo, quando se fala de "Encarnação". 
É o que a meditação sobre o Homem-Jesus e seu "coração de carne" nos ajudará a fazer aqui. [no livro Sagrado Coração do Homem]. 
A ideia de coração de Jesus é pelo menos tão antiga quando o evangelho, desde quando o Mestre disse aos discípulos: "Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração" (Mateus 11,29). São Bernardo gostava de meditar nessa palavra: sabe-se hoje, pelas concordâncias de que dispõem os estudiosos de Bernardo, que este é o versículo da Bíblia mais citado por ele. Para o santo doutor, não se tratava apenas de uma exortação espiritual ou moral. Esse expressão indicava, isto sim: "a humildade e mansidão de Deus, que desarmam o orgulho e autojustificação do homem e, desse modo, tornam possível a sua conversão". Essa expressão "humidade e mansidão", Bernardo a relaciona muitas vezes com a "pequenez" do "menino" ("Puer natus est nobis") de que fala Isaías (9,16). Cristo como o Pai, tem um coração "menino", sempre renascente, nunca inficionado pela maldade, pela vingança, pelo ódio... 
Mas é sobretudo quando João relata no seu Evangelho que "o soldado lhe abriu o lado, com a lança, e correu sangue e água" (João 19, 34), que ele deu origem a uma série ininterrupta de considerações que desembocam no culto do Coração de Jesus. Santo Agostinho chama a atenção para a "palavra cuidadosamente usada" por João ("vigilanti verbo evangelista usus est"): ele não disse que o soldado feriu ou transpassou o lado de Jesus, mas que o "abriu", fez dele uma passagem para o amor de Deus aos homens e o dos homens a Deus (Tract. super Evang. Joannis, CXX, 2). 
Os primeiros dez séculos da vida da Igreja, entretanto, mesmo meditando assiduamente esse "lado aberto" de Cristo, do qual brotavam fontes de salvação (os sacramentos, especialmente o batismo, representado na água, e a eucaristia, representada no sangue), não pararam na ideia de "coração". Só no século XI, num texto atribuído a Santo Anselmo, e, sobretudo, no século XII,  com São Bernardo, é que a devoção católica começou a perceber explicitamente o Coração de Jesus naquele lado aberto do Cristo na cruz. E daí por diante, foi uma torrente só, e os santos e testemunhos se sucedem inumeráveis nesse sentido. 
Mas foi no século XVI e XVII que os devotos do Coração de Jesus se tornaram multidão: Santa Teresa, São Pedro de Alcântara, Santo Inácio e muitos místicos jesuítas, São Francisco de Sales, São João Eudes, a Escola bérulliana e a Escola salesiana, como já vimos. S. João Eudes, da Escola bérulliana (quer dizer, uma escola de espiritualidade fundada e levada avante pelo Cardeal de Bérulle), foi quem conseguiu, pela primeira vez, a aprovação do culto público ao Coração de Jesus. 
Mas a grande responsável pela difusão da devoção em âmbito popular foi Santa Margarida Maria Alacoque, da escola de S. Francisco de Sales, com a ajuda decisiva dos jesuítas. 
A ideia de S. João Eudes e da Santa Sé, ao aprovar a festa do Sagrado Coração, não era celebrar um mistério particular ainda não lembrado na Igreja, e sim, o amor mesmo de Jesus que o havia impelido a se encarnar para a salvação dos homens. O "coração", seu coração real, seu coração de carne tinha a ver com esse amor da pessoa do Verbo Encarnado. Era um coração de homem verdadeiro, que sofreu, amou, teve pena, se emocionou, palpitou de alegria, de angústia, de cuidados, de saudade. Ele é símbolo e mais que símbolo de amor. Como em qualquer coração humano, os sentimentos todos do homem Jesus passam por ele, atingem-no, marcam-no. Por isso, a Igreja quer cultuá-lo, amá-lo, adorá-lo. Ele não é um coração qualquer, é o Coração de Jesus Cristo, Verbo de Deus, Filho único do Pai Eterno. Faz parte real da humanidade santíssima e adorável de Jesus, unida de modo divino e misterioso, de um modo que a teologia chama "hipostático", a Deus. Quer dizer: o que é humano em Cristo pertence indissociavelmente à Pessoa divina do Filho de Deus. Por isso, adoramos ao Coração de Jesus, mas o fazemos especialmente porque ele é símbolo do seu amor por nós. "Símbolo", não origem, ou órgão, ou fonte de amor. Isto foi dito explicitamente pela Santa Sé. O Coração de Jesus se liga, por isso mesmo, intimamente, com a Eucaristia e todas as intenções eucarísticas do Cristo. Liga-se à Paixão redentora, às intenções de expiação e reparação do Senhor, que sofre, morre e ressuscita. 
Começou-se, pois, por celebrar o amor, somente amor de Cristo; passou-se ao Coração, símbolo do amor; enfim, como queria De Bérulle, veio-se a cultuar, sob nome de Coração de Jesus, toda a pessoa do Salvador, e mesmo toda a sua obra amorosa de salvação. 
Porque é um coração de Deus é um Sagrado Coração. Porque esse Deus é verdadeiramente humano, é o Sagrado Coração do Homem. E mais: é um Sagrado Coração para o homem, e por isso, é também do homem, de todo homem. 








Ora, quem nos confirma a nós e a vós em Cristo, e nos consagrou, é Deus. Ele nos marcou com o seu selo e deu aos nossos corações o penhor do Espírito. (2 Coríntios 1)



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