sábado, 4 de junho de 2016

TEOLOGIA da Ladainha do Sagrado Coração de Jesus



Ao concluir o belíssimo livro, Sagrado Coração do Homem, o Padre Paschoal Rangel, apresenta o que chamou de Excurso Teológico, onde reflete sobre o Mistério da Salvação. Acompanhemos:

A Ladainha relaciona, bonitamente, "salvação" e "esperança": Coração de Jesus, "salvação" dos que "esperam" em vós, tende piedade de nós. Por sinal, embora menos explicitamente, volta a ligar os dois conceitos, na invocação seguinte, quando nos faz dizer: "Coração de Jesus, esperança dos que morrem (expiram) em vós...". Pois essa "esperança" é "esperança de salvação".

Dentro dessas expressões aparentemente singelas, guarda-se um enormíssimo desafio teológico: que é mesmo "salvação"? Poderíamos até continuar: que é mesmo "esperança"? Estas palavras, de tão repetidas, não nos provocam mais, não nos exigem nada. Mas saberíamos responder seriamente o que significa, de fato, "salvação"? Estranhamente, esse embaraço não toma conta só de fiéis que recitam ladainhas. Quando o Concílio Vaticano II reafirmou que a Igreja é um sacramento universal de salvação, o teólogo jesuíta P. Smulders observava que uma das grandes falhas da teologia atual era a ausência de uma reflexão profunda e lúcida sobre o tema da salvação. Um pouco depois, Y. Congar insistia sobre a desatenção dos teólogos para com a ideia de salvação: "Que é, para o mundo e para o homem, ser salvo? Em que consiste a salvação?" E queixava-se de que se tivesse deixado uma noção tão básica e com tantas repercussões práticas na vida dos cristãos, abandonada à vaguidade, à indefinição. Congar, por sinal, andava preocupado com isto desde os anos 50 e escreveu o livro: "Vaste monde, ma paroisse", para estudar a "verdade e as dimensões da salvação".

Mas nessa época, o termo andava desacreditado, talvez pelo mau uso que fizemos dele. Os "críticos" pouco construtivos haviam desancado a velha pregação dos missionários paroquiais sobre o "salva tua alma" e toda uma concepção muito privatista, individualista mesmo e até fechada e egoísta, de salvação.

Os anos 60, contudo, um pouco por causa do Concílio, presenciaram um inesperado reflorescimento da temática da "salvação", que começou a ser estudada em teses universitárias, em livros, revistas, cátedras de teologia. Iniciou-se, até mesmo, a publicação de uma ampla "Dogmática" escrita ou a ser escrita a partir da perspectiva da "História da Salvação"; obra que teve, um pouco mais tarde, muitas dificuldades para encontrar autores (teólogos) que quisessem completá-la dentro daquela visão.
De qualquer modo, o interesse pelo tema da salvação, excitado nos anos 60 e parte dos 70, tornou a cair nos últimos doze, quinze anos, obscurecido pela secularização, a teologia política e a teologia da libertação, que desviaram o foco de interesse teológico para as questões antropológicas, especialmente a da auto-realização do homem como homem, o desenvolvimento e a revolução social, a temática da libertação dos oprimidos, através de uma reviravolta estrutural da sociedade e da ordem econômica internacional. O vocabulário teológico mudou, o termo "salvação" quase desapareceu do nosso glossário, assim como a palavra "alma". "Salvação da alma", então, nem pensar. As novas traduções da Bíblia costumam trocar sistematicamente o termo "alma", especialmente nos Evangelhos, por "vida". É um fenômeno conhecido da sociolinguística: a gente podia até fazer um estudo - sem dúvida fascinante - da "vida, paixão e morte" das palavras e ainda de suas ressurreições. "A história das palavras é um dos índices mais seguros da história das ideias" - lembrava, há muitos anos, o nosso Dr Alceu Amoroso Lima. Elas somem e ressurgem na medida em que as ideias estão mortas ou redivivas na sociedade. (...) 

"O Evangelho é a mensagem da salvação, e a salvação devia ser, consequentemente, o tema principal da reflexão teológica e pastoral" (P. Smulders). No entanto, prossegue Smulders, os cristãos em geral, a Igreja Católica com um todo, mal parecem ter consciência de que justamente a concepção cristã de salvação é posta em dúvida ou atacada pelas outras religiões, assim como pelo moderno humanismo nas suas diversas formas. Não tomamos ainda consciência clara de que, no diálogo atual com as outras religiões e com o mundo moderno, se impõe exatamente a tomada de consciência diante dessa pressuposição primeira: o cristianismo é uma mensagem de salvação. Mas, para isso, é necessário definirmos melhor, para nós mesmos e para os outros, o conceito de salvação. A profunda incompatibilidade do espiritismo, do teosofismo e de todos os gnosticismos, assim como do marxismo e outros humanismos com a fé cristã, está exatamente aí: eles não aceitam a salvação em Cristo, por Cristo, de Cristo.

A idias mais difundida de salvação continua sendo a de uma "apropriação do ato divino salvador por uma pessoa ou uma comunidade". Por dom sempre gratuito, uma pessoa recebe e acolhe, graças aos méritos e ao amor sacrifical de Cristo, a graça nesta vida e glória eterna na outra. A salvação mantém, portanto, um caráter primaricialmente "subjetivo". Mais: embora se compreenda que a salvação se inicia aqui, na vida terrestre, sempre que um ato de graça divina modifica nossa vida e nos faz entrar "em comunhão com Deus e com os homens", o que caracteriza a ideia geral de salvação é que ele só se realiza completamente após a morte, em estado de definitividade, como dizem Rahner/Vorgrimler, em seu "Dicionário Teológico": "Não se deve identificar simplesmente essa conceito (salvação) com o de graça. Deveríamos reservá-lo (em contraposição às utopias intramundanas) àquele momento de definitividade que a teologia exprime com os conceitos setorialmente diferenciados de "visão de Deus" e "ressurreição da carne".

A salvação, em sentido estrito, nunca nos é dada no tempo, nada aqui é definitivo. Por isso, concluem Rahner/Vorgrimler, "a salvação, mesmo na ordem salvífica cristã, continua sendo o objeto essencial da esperança". É algo a plenificar-se além da morte.

Então, já sabemos duas coisas: 1) a noção corrente de salvação inclui um elemento "subjetivo" de apropriação do ato salvífico divino por um sujeito individual ou coletivo; 2) por muito que a salvação comece na vida terrestre, temporal, ela só se completa e é definitiva na eternidade; por isso, enquanto peregrinamos neste mundo, ela permanece sempre objeto da "esperança".

Além dessa ideia comum, precisamos salientar que a salvação cristã inclui intrínseca referência a um Outro, ao Transcendente. Só Cristo Jesus, em quem Deus está presente; que, sendo homem, é ao mesmo tempo, Deus; só Ele pode der a obra salvífica de Deus em nós, homens.  Sem o Salvador, não há salvação. "Não há salvação em nenhum outro" (At 4,12). "Pois não há, sob o céus, outro nome dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos". Jesus é, pois, não apenas o Salvador, mas a própria Salvação. Uma salvação, digamos, objetiva, a realização do plano de Deus.

Não seria bom, entretanto, cair numa espécie de dicotomia entre "objetivo-subjetivo", pois a salvação concreta, real, "é inseparavelmente: desígnio eterno do Pai, ato de Deus por Cristo e experiência vivida pelos fiéis, no Espírito, do livramento, da realização da imagem de Deus em nós, da entrada na amizade divina, da esperança da libertação definitiva". Portanto, ela é ato objetivo de salvar, por parte de Deus, em Cristo Jesus, e apropriação subjetiva desse ato salvador, por parte do homem que é salvo. Em nós, os dois elementos são inseparáveis. Não vamos, porém, ignorar que Deus enviou seu Filho como nosso Salvador e que a ação salvífica realizada por Cristo é uma realidade dada na História da Salvação, independentemente de nós a transformarmos em "nossa" experiência pessoal ou comunitária; que ela nos é oferecida através de mediações essenciais, como a Igreja, sacramento de salvação, os sacramentos, especialmente a Eucaristia, mas também o Batismo, a Penitência; a pregação ou anúncio da Palavra revelada etc. Se, por um lado, o poder salvador da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, o Cristo, só se efetiva, existencialmente, na experiência da fé e da ressurreição espiritual dos crentes, por outro, é absolutamente certo que o que é existencialmente real neles, os fiéis, o é, antes, nele, o Cristo; e uma coisa corresponde à outra num único evento de salvação. Este seria o terceiro elemento que gostaríamos de salientar no conceito de "salvação": a salvação depende de um Outro divino e divino-humano; é um "dom" de Deus Pai através de Jesus Cristo. Mas só se torna existencialmente, concretamente, "minha" salvação, pela união do homem a salvar e do ato salvífico do Salvador.

Um quanto elemento é que a salvação inclui uma libertação, uma redenção, uma reconciliação. Supõe, portanto, um rompimento, uma dívida, uma culpa a ser perdoada, uma cura do homem ferido pelo pecado. Não se trata somente do pecado individual, posterior a uma primeiro momento de união com Deus no amor divino que se oferece a nós. Há aquilo que a Igreja chama "o pecado do mundo", que o Cordeiro de Deus veio tirar. O "mundo" (o mundo dos homens, coletivamente) se opõe ao desígnio de amor do Pai, à realização de seu plano de levar os homens ao Reino dos Céus; o mendo caminha para a recusa, a negação, a morte, aderindo ao "pai da mentira", "ao que nega" e escraviza. Esse pecado é anterior a nós, está aí, tem uma dimensão social e constitui uma condição coletiva da humanidade. Diante disso, salvação é também reconciliação, cura, redenção. Só não podemos esquecer que, independente do pecado do homem, há um desígnio "salvador" do Pai Criador, contra o qual age o pecado ou o pecador, pois Deus nos fez, homens e mulheres, cada um e a humanidade, para o seu Reino. Neste sentido, há teólogos, antigos e novos, que preferem pensar que a Encarnação se daria de qualquer maneira, mesmo sem a necessidade de reparar o pecado do mundo, pois um Homem-Deus faria parte do Plano de Felicidade e Salvação da humanidade. Esta, porém, é outra discussão.

Um quinto ponto a considerar: é preciso não perder de vista o sentido estritamente pessoal da salvação escatológica, sem deixar de considerar que a "pessoa humana" é um ser complexo (e não só enquanto é carne e espírito), mas enquanto, de um lado, é indivíduo, é ele mesmo, é uma interioridade de certo modo inalienável e inatingível, e, de outro, é um ser relacional, aberto para o outro, não apenas no nível interpessoal, mas no nível das relações sociais, macro, políticas, econômicas. Como percebeu finamente o existencialismo (que se pense em Camus e L'Homme revolté), o marxismo reduziu o homem à "matéria de História", quando o destino de cado um é absolutamente único, ou, como tentou mostrar Ladislau Boros em seu "Mysterium Mortis": na morte, quando se decide definitivamente a sorte do homem, a pessoa é chamada a fazer, pessoalmente, sua última opção, fixando-se nela eternamente; nessa hora, o homem está diante de Deus, certamente cercado pela "comunhão dos santos", acompanhado de tudo o que fez durante a vida (e isto nem sempre significa uma história de amor, generosidade, fraternidade, solidariedade, pelo contrário até), mas, em última análise, terá de fazer sua última opção fundamental e definitiva, como um ato livre, pessoal. E aí, por muito apoio que tenha, de Deus e dos homens, ele está sozinho. Ninguém pode decidir por ele. Escreveu L. Boros: "Sendo a morte o mais elevado, o mais luminoso, o mais decisivo e o mais íntimo encontro que se possa realizar na existência humana, é um resumo substancial de todos os encontros do Cristo, que balizam uma vida: ela é como que a concentração da história dessa vida no instante em que ela se vê colocada diante da última opção". E um pouco adiante: "Podemos, então, formular a hipótese em sua densidade mais profunda: a morte é o primeiro ato completo, de acordo com a plenitude da pessoa humana; ele é, pois, o lugar privilegiado da tomada de consciência de si, da liberdade, do encontro de Deus e da opção que fixa a sorte eterna do ser humano.

A salvação final, definitivizada, inclui, ois, um caráter único e pessoal, e exige um ato, uma opção, que cada um de nós terá de realizar ou aceitar, em última análise, de modo radicalmente único, solitário, sem intermediários.

Isto não obstante, não poderemos esquecer que esse ato pessoal, insubstituível e indeclinável, indelegável, que ninguém pode fazer por nós, não existirá sem toda uma história anterior, uma biografia, em que os outros e o OUTRO, a sociedade e o mundo dos homens, a história da salvação e a comunhão dos santos pesam muito, incalculavelmente. Se Camus tem razão quando reclama do marxismo por ter transformado o homem em "matéria da História" e desfigurar sua individualidade e seu espírito; também tem razão Péguy quando escrevia no "Mystère de la charité de Jaenne d'Arc": "Temos de chegar juntos à casa de Deus. Temos de nos apresentar juntos. Não podemos chegar para encontrar o nosso Deus, una sem os outros".

A salvação - este é o ponto - constitui-se em um ato solitário e solidário, o máximo de interioridade com o máximo de comunhão com os outros. De algum modo, de comunhão até com o cosmos, ainda que não tenhamos de cair numa espécie de romantismo teológico sobre a redenção cósmica. Este caráter simultaneamente individual e comunitário de salvação vem frisado na Lumen Gentium, quando se declara que "é do agrado de Deus salvar e santificar os homens, não um a um, como se não houvesse entre eles nenhuma conexão, mas formar com eles um povo, que O conheça na verdade e sirva na santidade". No entanto, esse povo, como notem Rahner e Vorgrimler... "não abarca todos os homens"; "muitas vezes parece até um "pequeno rebanho". Por isso mesmo, o Concílio acrescenta que, "em todos os tempos e em todos os povos, Deus aceita e salva aqueles que O temem e praticam a justiça". Todos e cada um, Deus os salva.

Essa dialética do individual e do social irrompeu de maneira dura, contundente, com a teologia política em duelo com a teologia existencial e personalista. Um duelo em que se acabou privilegiando o macrossocial e o político, sem suficiente força de negação da negação. Johann Batist Metz, certamente o introdutor desse tipo de pensamento na teologia católica, confessou que, "sem dúvida, no Novo Testamento, se encontra uma ligítima valorização do indivíduo, uma individualização de cada pessoa, uma por uma, diante de Deus; e se pode, com todo o direito, considerar isto como uma característica fundamental da mensagem neotestamentária - sobretudo em sua tradição paulina". "Não se trata - continua ele - de questionar esse caráter em nome da desprivatização. Pelo contrário. Mas..." E aí questiona o inquestionável. Pois a existência concreta do indivíduo está hoje (como se não tivesse estado sempre, desde os tempos ancestrais) de tal maneira envolvida no social que, se uma teologia não entender a própria existência como um problema político, no sentido mais amplo do termo, vai acabar se tornando abstrata, irrealista, em relação à própria situação existencial do homem de hoje. Além disso, a tendência à privatização leva a teologia a "espoliar" a fé de toda força crítica e a abandoná-la, inerme, ao jogo das ideologias sócio-políticas modernas. Enfim, uma teologia assim privatizada - inclusive e sobretudo em termos de salvação - perderia toda autoridade e não emprenharia ninguém na salvação de ninguém; não teria nenhum poder de influenciar e modificar qualquer coisa.

Evidentemente, não queremos uma fé "espoliada" de sua força crítica. Nem diante do indivíduo, nem diante da sociedade e suas ideologias. Não queremos uma fé e uma mensagem de salvação que nos torne ineficientes no meio do mundo. Mas é preciso levar adiante a dialética do "já" e "ainda não". Pois a "promessa" de Jesus é, inespoliavelmente, "escatológica". Ora, a tentativa de Metz e das teologias políticas acaba por "horizontalizar" demais a própria escatologia. Conta-se demais com a História e com o Futuro histórico. Veja-se esta explicação de Metz: "...a salvação anunciada por Jesus permanece em relação constante com o mundo, não num sentido natural e cosmológico - é verdade - mas antes num sentido social e político: como um fermento que, com sua crítica, liberta este mundo social e seu processo histórico. As promessas escatológicas da tradição bíblica - liberdade, paz, justiça, reconciliação - não se deixam privatizar. Elas nos colocam incessantemente, necessariamente, defronte à nossa responsabilidade social". E, não obstante sua reserva, segundo a qual a "promessa escatológica" não se identifica com nenhuma situação social concreta e, por isso, diante dela, todo tipo de sociedade, num determinado momento, se revela "provisório", - essa "escatologia" nunca se desveste de seu empenho e seu caráter político. As promessas a que se refere a "promessa escatológica" de Jesus, '"não são o horizonte vazio de uma exclusiva espera religiosa, não constituem simplesmente uma ideia reguladora, mas antes um imperativo crítico e libertador par o hoje que é o nosso".

Essa secularização da escatologia nos parece excessiva e não se dialetiza suficientemente. Há valores individuais e escatológicos, na mensagem evangélica, que certamente ultrapassam os horizontes temporais e levam a uma "espera religiosa", que está longe de ser "vazia", só pelo fato de não ser tão explicitamente sócio-política e não parecer deixar rastros sensíveis dentro da História.

O Importante nisso é não transformar o Evangelho numa mensagem primariamente sócio-política. Pois, em profundidade, ele é uma "mensagem de salvação"; e é impossível chegar à salvação, no sentido pleno, sem aquele caráter de "definitividade" de que falam Rahner/Vortimgler e que, por isso mesmo, ultrapassam o Tempo e a História. Sem esse aspecto, ficamos no "já" e o "ainda não" - numa salvação apenas incoativa. E corremos o risco - este mais real do que os apontados por Metz numa religião privatizada - de transformar o cristianismo em um humanismo e de esvaziar, de verdade, o sentido da salvação cristã. Como anotamos anteriormente, aí está a grande e radical oposição entre o cristianismo e as grandes religiões não cristãs; entre o cristianismo e os humanismos e humanitarismos mais diversos: eles não acreditam e não aceitam a "salvação em Jesus Cristo". Para nenhum deles, Jesus é o Salvador.










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